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A Filosofia da Composição: Samanta Schweblin

  • Foto do escritor: editoracontratempo
    editoracontratempo
  • 11 de set. de 2023
  • 9 min de leitura

Atualizado: 15 de set. de 2023

Augusto Quenard Tradutor e escritor


A precisão da palavra é apenas uma das abordagens possíveis no trabalho de lapidar a língua. Penso no Flaubert, no Poe, no Borges, na Clarice, na Ferrante. A cada escrita pertence uma falta e uma busca singularíssima para dissolver a angústia da incomunicabilidade.


Nesse espectro do sofrimento criativo canalizado pela literatura, a Samanta Schweblin é um exemplar contemporâneo e transparente. Diz-se contista, mesmo com uma novela e um romance premiados. Diz-se solitária, apesar da vitrine de reconhecimentos. Assume para si uma estética Lynchiana, a de que a arte não pode dizer nada senão que o mundo é um lugar estranho.


O incômodo da autora com o outro está aí, na linguagem, na impossibilidade de dizer o que importa. No inominável e no fato de que seja o inominável a principal força de amálgama da realidade.


Na infância, viveu um lapso de silêncio. Uma revolta contra a ineficácia da língua. Não queria mais falar enquanto não fosse criado o mundo a partir do verbo em estado de signo, não de carne. O conflito foi felizmente produtivo: encontrou na literatura um mecanismo mágico e misterioso com o qual podia pôr à vista dos outros o que fugia à literalidade.


Adulta, o que conduz seu ímpeto criativo é o prazer do controle. A precisão, no caso da Samanta, se submete ao cálculo arquitetônico de um efeito: o sentimento perturbador de que a realidade cotidiana é sinistra. Esse manto que ela prepara para jogar como uma rede sobre o leitor é, em contrapartida, o véu que ela arranca da normalidade, das convenções. O absurdo, que não se faz chiste na leitura, prepondera como medo.


Para mí, cuando hablo de tensión, y de escribir con el lector, me parece que el juego más precioso e increíble que hay está en esa resistencia. O sea, yo invoco algo, el lector piensa, dibuja, y yo creo que el gran secreto al final está en ir en esa dirección, en la que va el lector, pero no pisar exactamente ahí. O sea, si yo digo “estoy en la playa con mamá y papá, hace frío” ahí hay resistencia, y el lector dice “sí es esto y no es exactamente”. Ahí está todo para mí, en ese juego (Entrevista Autores x Autores, na Biblioteca Nacional Mariano Moreno). ¹_tradução

O trecho da entrevista acima se refere ao primeiro momento desse esquema. Não é exatamente um trabalho de insinuação, um dos recursos fulcrais para a literatura ser literária e não literal. O que a Samanta propõe é o desvio sutil do que está a ponto de se constituir como familiar. Também, às vezes, uma frustração de expectativa no nível do enredo, mas aqui enfatizo uma divergência da expectativa no âmbito microscópico da frase. É nessa resistência que ela propõe o jogo literário. Vejamos um trecho de “Matar a un perro”:


Cuando voy llegando al auto veo al Topo sentado, esperándome en la misma posición en la que estaba antes, y sin embargo veo abierto el baúl del Peugeot. El perro cae como un peso muerto y cuando cierro el baúl me mira. En el auto, el Topo sigue mirando hacia adelante. Dice: si lo dejaba en el piso se levantaba y se iba. Sí, digo. No, dice, antes de irse tenía que abrir el baúl. Sí, digo. No, tenía que hacerlo y no lo hizo, dice. Sí, digo, y me arrepiento enseguida, pero el Topo no dice nada y me mira las manos. Miro las manos, miro el volante y veo que todo está manchado, hay sangre en mi pantalón y sobre la alfombra del auto. Tendría que haber usado guantes, dice. La herida duele. Viene a matar a un perro y no trae guantes, dice. Sí, digo. No, dice. Ya sé, digo y me callo. Prefiero no decir nada del dolor. Enciendo el motor y el coche sale suavemente. ²_tradução

E um de “Irman”:


–Ayúdenme a darla vuelta –dijo Oliver.

El tipo ni se movió. Me acerqué y me agaché del otro lado, pero apenas pudimos moverla.

–¿No va a ayudar? –le pregunté.

–Me da impresión –dijo el desgraciado–, está muerta.

Soltamos inmediatamente a la gorda y nos quedamos mirándola.

–¿Cómo que muerta? ¿Por qué no dijo que estaba muerta?

–No estoy seguro, me da la impresión.

–Dijo que “le da impresión” –dijo Oliver–, no que “le da la impresión”.

–Me da impresión que me dé la impresión.


E ainda um de “Hacia la alegre civilización”:


Gruner avanza hacia la ventanilla, confía en la hospitalidad de la gente de campo, en la camaradería masculina, en la buena voluntad que nace en los hombres que son bien encarados. Va a decir por favor, qué le cuesta, usted sabe que ya no hay tiempo de encontrar cambio. Y si el hombre se niega va a preguntar por otras opciones, usted sabe, comprar el boleto en el tren o, al llegar, pedirlo en la boletería de la terminal. Hágame un vale al menos, facilíteme un papel que indique que debo abonarlo después. Pero ya en la ventanilla, cuando las luces del tren prolongan las sombras y la bocina es fuerte y molesta, Gruner descubre que tras las rejas no hay nadie, solo un banco alto y una mesa atiborrada de papeles sin sellar, futuros boletos hacia distintos destinos. Con el tren que entra a la estación a velocidad considerable los ojos de Gruner encuentran, a un lado de las vías y en el campo, al hombre que aún sonríe y mediante señas indica al conductor que no debe detenerse, puesto que nadie ha comprado un boleto. Después, al alejarse el sonido de la máquina, el perro vuelve a echarse y la única lámpara de la estación parpadea hasta apagarse por completo. ⁴_tradução

O dizer do mundo fictício é falho. A angústia da Samanta criança se sublima nas personagens. Ao primeiro momento do desencontro entre o que o texto diz e o que o leitor prediz como ato de leitura, segue o segundo momento, o desencontro do dizer intradiegético. Não há resistência apenas no texto que não constitui a frase esperada; a mesma resistência, em outra escala, amplificada, é proposta pelo universo ficcional aos protagonistas da história.


O Topo não só repreende a imperícia do narrador, ele também cancela sua fala, não acolhe a concordância, mantém sua rigidez num discurso fechado e unívoco. Tanto a palavra do narrador como a ausência dela constituem um equívoco.


O interlocutor de Oliver parece manejar outro código, não responde aos comandos, omite a informação cabal, troca e mistura expressões, invalidando o diálogo com sua perplexidade diante da mulher morta.


Gruner confia na hospitalidade dos homens de campo, prepara longamente sua solicitação humanitária, mas é destituído de sua capacidade de comunicação perante a ausência inesperada do outro, que se comunica com gestos, vetando tanto o diálogo como a sua volta para a cultura.


A linguagem não dá conta da comunicação necessária para dissolver o conflito, a palavra fica no abismo do sentido. A compreensão satisfatória fica a milímetros de ocorrer, dando espaço para a faísca que inflama o estranhamento.


Assim, a Samanta, voltada para a preparação atenta e hábil da resistência, isto é, de avançar o texto numa direção que diverge de modo ínfimo do que se espera, elabora o final da narrativa sobre esse magnetismo crescente. Esse é o terceiro momento: o leitor sabe o que acontece, embora não tenha o alívio de confirmação a que está habituado com o uso explícito da língua. O estranhamento persiste na dissonância e o medo se propaga sobre a ausência de encerramento, a falta do absoluto. O que fica distante, ao mesmo tempo, de um final aberto:


Para mí es necesario programar esa precisión. O sea, aunque después no salga. Porque después, uno como lector también se sorprende. Cuando empiezo a charlar con otros lectores sobre cuentos particulares, y te das cuenta que entre la línea 14 y la línea 15, 30 lectores al mismo tiempo pensaron “es ella”, no? O pensaron “se va a morir”. O sea, son palabras muy precisas, no es cualquier cosa. Por eso, me acuerdo una vez un periodista, no sé ahora de qué cuento estaba hablando, y me decía “no, por esto es un final abierto…” y yo le digo “bueno, a ver, y cuál es el final? Si es un final abierto”. Entonces me dice “bueno, lo que pasa al final…” y me explica lo que pasa al final. Y le digo “bueno, pero entonces una cosa es que no esté escrito en el cuento y otra cosa es que esté librado al azar”. ⁵_tradução

O final ecoa o que o leitor supõe saber, um efeito de saber, não uma informação concreta. Quer dizer, ecoa seu próprio medo. Em “Distancia de rescate”, novela que segue o mesmo esquema, a explicação do conflito também se furta à literalidade, e aciona, ainda, um mecanismo interno de tensão construído ao longo do texto. A mãe explicita, na preparação do enredo, a noção que dá título à obra:


Ahora mismo estoy calculando cuánto tardaría en salir corriendo del coche y llegar hasta Nina si ella corriera de pronto hasta la pileta y se tirara. Lo llamo “distancia de rescate”, así llamo a esa distancia variable que me separa de mi hija y me paso la mitad del día calculándola, aunque siempre arriesgo más de lo que debería. ⁶_tradução

No entanto, a fatalidade ocorre não quando a distância de resgate foi ultrapassada, como se esperaria; ao contrário, é quando ela está em sua menor extensão. Não há como estar a salvo, não há precaução eficaz num mundo em que a comunicação persiste em acontecer de modo enviesado. O vazio da fantasia só pode ser preenchido com matéria funesta.

Traduções


¹ Para mim, quando eu falo de tensão, e de escrever com o leitor, acho que o jogo mais precioso e incrível que existe está nessa resistência. Ou seja, eu invoco algo, o leitor pensa, desenha, e eu acho que o grande segredo no final está em ir nessa direção, na que vai o leitor, mas não pisar exatamente aí. Ou seja, se eu digo “estou na praia com mamãe e papai, está frio” aí tem resistência, e o leitor diz “sim é isso e não é exatamente”. Aí está tudo para mim, nesse jogo. (Entrevista Autores x Autores, na Biblioteca Nacional Mariano Moreno).


² Quando vou chegando ao carro vejo o Topo sentado, me esperando na mesma posição em que estava antes, e no entanto vejo o porta-malas do Peugeot aberto. O cachorro cai como um peso morto e quando fecho a tampa olha para mim. No carro, o Topo continua olhando para frente. Ele diz: se o senhor tivesse soltado ele no chão, ele levantava e ia embora. Sim, digo. Não, diz, antes de ir lá deveria ter aberto o porta-malas. Sim, digo. Não, tinha que fazer isso e não o fez, diz. Sim, digo, e me arrependo em seguida, mas o Topo não diz nada e olha para minhas mãos. Observo minhas mãos, o volante e percebo que tudo está manchado, tem sangue na minha calça e sobre o tapete do carro. O senhor deveria ter usado luvas, diz. A ferida me dói. O senhor vem matar um cachorro e não traz luvas, diz. Sim, digo. Não, diz. Já sei, digo e fico calado. Prefiro não falar nada sobre a dor. Ligo o motor e o carro sai suavemente.


³ — Me ajudem a virar ela — disse Oliver.

O homem nem se mexeu. Fui até o corpo, me agachei do outro lado, mas não conseguimos movê-la.

— Não vai ajudar?— Perguntei.

— Me dá uma sensação ruim — respondeu o desgraçado —, ela tá morta.

Soltamos imediatamente a gorda e ficamos olhando para ela.

— Como assim morta? Por que tu não falou que ela tava morta?

— Não tenho certeza, me dá essa impressão.

— Tu falou que “te dá uma sensação ruim” — observou Oliver —, não que “te dá essa impressão”.

— Me dá uma sensação ruim que me dê essa impressão.


⁴ Gruner avança até o guichê, confia na hospitalidade das pessoas do campo, na parceria masculina, na boa vontade que nasce nos homens que são bem encarados. Vai dizer por favor, não custa nada, o senhor sabe que já não há tempo para encontrar dinheiro trocado. E se o homem se negar ele vai perguntar por outras opções, o senhor sabe, comprar o bilhete no trem ou, ao chegar, pedi-lo na bilheteria da estação. Faça-me ao menos um vale, me ajude com um papel que indique que devo pagar depois. Mas no guichê, quando as luzes do trem prolongam as sombras e a buzina é forte e incômoda, Gruner descobre que por trás das grades não há ninguém, apenas um banco alto e uma mesa cheia de papéis sem carimbar, futuros bilhetes para diferentes destinos. Com o trem que entra na estação a uma velocidade considerável os olhos de Gruner encontram, a um lado dos trilhos e no campo, o homem que ainda sorri e por meio de sinais indica ao maquinista que não deve se deter, pois ninguém comprou um bilhete. Depois, ao se afastar o som da máquina, o cachorro se deita outra vez e a única lâmpada da estação pisca até se apagar por completo.


⁵ Para mim é necessário programar essa precisão. Ou seja, ainda que depois não aconteça. Porque depois a gente como leitor também fica surpreso. Quando eu converso com outros leitores sobre contos particulares, e percebo que entre a linha 14 e a 15, 30 leitores ao mesmo tempo pensaram “é ela”, né? Ou pensaram “ela vai morrer”. Ou seja, são palavras muito precisas, não é qualquer coisa. Por isso, lembro que uma vez um jornalista, não sei agora de qual conto ele estava falando, me dizia “não, mas isso é um final aberto…” e eu respondi “bom, mas então, qual é o final? Se é um final aberto”. Então ele me disse “bom, o que acontece no final…” e me explicou o que acontecia no final. Então eu disse para ele “bom, mas então uma coisa é que não esteja escrito no conto e outra coisa é que tenha sido deixado ao acaso”.


⁶ Agora mesmo estou calculando quanto eu demoraria em sair correndo do carro e chegar até a Nina, se ela corresse de repente até a piscina e se jogasse nela. Eu chamo isso de “distância de resgate”, é o nome que dou a essa distância variável que me separa da minha filha e passo a metade do dia fazendo esse cálculo, ainda que eu sempre arrisque mais do que deveria.


Todas as traduções por Augusto Quenard.

Referências



Entrevista em que a autora fala de composição: Autores x autores / Abril 2019. Biblioteca Nacional Mariano Moreno. Link: https://www.youtube.com/watch?v=TkH9UkZPJaE


Os contos citados são do livro Pájaros en la boca, Literatura Random House, 2021.


A novela citada é “Distancia de rescate”, Literatura Random House, 2020.

 
 
 

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