top of page
Halftone-Dot-Textures-2.jpg

contrablog

"O mar enquanto", microscópico grupo de vagas

  • diegolockfarina
  • 11 de nov. de 2024
  • 7 min de leitura

Augusto Quenard, autor de Condomínio Aquário, parte de uma análise da relação da poesia brasileira com o mar para explorar O mar enquanto, de Diego Lock Farina, obra lançada recentemente pela Contratempo.



Parece-me haver três relações possíveis de um portoalegrense com o mar: a da fantasia, instaurada pela resignação de viver ao lado de um estuário cujo contato não é facilitado pela urbanização; a do ócio, pois a metrópole próxima do litoral dá-se ao hábito de ter uma casa na praia; e a da linguagem: o porto, em sua proporção fluvial, de Porto Alegre, não dá conta da dimensão simbólica do “porto” da denominação “Porto Alegre”, que sustenta também o marítimo em sua falta.


Essa tese infundada poderia bastar, na minha leitura de O mar enquanto, para dar um sentido à pergunta que me despertou o título do livro: por que um autor portoalegrense fala do mar? Sem dúvida não uma pergunta que pretendia referir uma incoerência ou um desatino, mas antes uma reflexão inicial para a recepção da obra.


No entanto, não foi necessário avançar muito na leitura para abrir mão das elucubrações e fincar pé no texto a fim de elaborar um sentido. Diz um trecho do primeiro poema:


O mar pertence

invariavelmente

ao microscópico grupo

das coisas imensas

que continuam


Esse fragmento, e a proposta de leitura que em breve vou comentar, ecoaram um texto crítico que eu havia lido fazia pouco tempo e permanecia vivo em minha memória, o artigo “Um mar à margem: o motivo marinho na poesia brasileira do Romantismo”, do livro Percursos da poesia brasileira, de Antônio Carlos Secchin.


Nele, o autor parte de uma pergunta que, se não é mais pertinente do que a minha, no mínimo é mais interessante:


Nos famosíssimos versos da ‘Canção do exílio’, Gonçalves Dias fala de terra, aves, estrelas, bosques: fala de quase tudo, mas não do mar. A natureza do Brasil, na sua idealização exemplar, já surge celebrada com o mar a menos. E nos outros poetas românticos? O mar teria sido elemento importante na constituição de um espaço paradisíaco, ou, ao contrário, acabou retraindo-se como um convidado modesto no banquete suntuoso do imaginário romântico?

Em seguida, Secchin desenvolve a análise feita das obras de 52 poetas do período. Explica as metonímias pesquisadas para além da palavra “mar”, os conjuntos temáticos em que se poderiam separar os poemas, a seleção dos mais representativos, e finalmente discorre sobre estes para concluir o artigo com a formulação de uma resposta possível:


Assim, como também ocorre na “Canção do exílio” de Gonçalves Dias e nos “Fragmentos” de Sousândrade, comemora-se [no imaginário do Romantismo] menos o mar do que o fato de sair dele. E aqui aproximamo-nos do âmago da questão. Em geral, o mar que se celebra é mar de partida, cheio de fascínio e de promessas diante do desconhecido. E o mar brasileiro é um mar de chegada, marco de uma história alheia que nele semeou seus signos opostos: a opulência vitoriosa do europeu e a degradação do escravo africano. Oceano da dominação e da vergonha, contraindicado para aglutinar os projetos, tão caros aos românticos, de afirmação nacionalista de um “grande povo”. Conforme vimos, Castro Alves pediu a Colombo que fechasse a porta de seus mares. De costas para o mar travado, e ávido para lançar-se ao que se oculta além, muito além daquela serra, o poeta não precisou da aventura marinha para cultivar um imaginário de afirmação e conquista. Como um marinheiro a seco e às avessas, navegou no desejo, talvez frustrado, de fazer em terra firme a construção desse sonho sempre instável e inacabado que leva o nome de Brasil.

Com essa leitura eu me senti autorizado a pensar que o Diego, talvez, também seguisse uma tradição do mar não como elemento de esplendor e fascínio, de hipérbole ingênua – que é, de certo modo, o mar que subjaz à tese com que eu abri este texto – mas daquilo que o Secchin não trata, e que a poesia já insinuava no período do romantismo, ou começava a insinuar: de um mar incircunscritível, marcado pelo traço da indiferença, da impassibilidade diante da angústia que nos causa a necessidade de atribuir sentido e compreender o real.


E esse mar, arrisco a dizer, se cola, em sua incomunicabilidade, à falta do poeta. Falta constituinte do sujeito, sim, mas também inexpugnável do artista. E tal falta, em O mar enquanto, parece derivar em objetos hipotéticos, não necessariamente fictícios, que se apresentam para propor a identificação dessa falta, em suas facetas infinitas, como o desdobramento de ondas que crescem volumosas e chegam tímidas, frágeis, à praia. Como uma forma de nomear, também, a nostalgia profunda que se percebe no absurdo da existência, no mar da linguagem: a nostalgia de um sentido. Uma melancolia, quem sabe.


De fato, e agora retomo o poema citado, o conjunto microscópico das coisas imensas que continuam é um conjunto de melancolias, que, diferentemente do luto, são perdas que não acabam, as perdas que não se pode elaborar, porque justamente, adverte o poeta, “continuam”.


O mar como pertencente mas também como simbólico representante do conjunto de incompletudes, objetos que não podem ser solucionados, sintetizados, assim como o mar não pode ser circunscrito.


Esses são os assuntos que seguem ao poema introdutório do livro. A obra, então, é o próprio grupo daqueles vislumbres que o poeta pôde condensar entre os elementos que compõem a realidade e se inscrevem nas coisas imensas que continuam: o horizonte, a saudade, o tempo, a tristeza, as metáforas, a linguagem, a intimidade, as línguas, os corpos, o dia, o nada, a literatura, a escrita, os rituais, o esquecimento, o chão, as partidas, os cardumes, os pássaros, as celebrações, as sucessões, a liberdade, o amor, as paisagens, os sinais, as tradições, as cidades, a chuva, as janelas, os países invisíveis, as coisas sem fundo, os reinícios, o absurdo, as viagens, o desejo, a ideia de Paris, as cores, a velhice, os finais, a loucura, os acidentes, o olhar, a pessoas que não dizem o que dizem, o medo, o desencontro, o êxodo, o choro... Sem excluir outros elementos mais complicados, mais dramáticos, como a doença, a morte, o suicídio ou a língua portuguesa.


Cabe dizer que uso o termo melancolia no sentido lato. Não penso na melancolia do que comumente chamamos de depressão, a melancolia patológica. Considero a melancolia do artista, o spleen portoalegrense, a tristeza pensativa do sujeito sem mar, que, compreende-se, mesmo diante do mar, pela natureza deste, ainda se sabe sem mar.


Daí que o tom do livro seja necessariamente de inércia do poeta, mas de uma intensa mobilidade imagética; de resignação, mas de esperança; de ranço, mas com afeto. Oscilações internas.


Mobilidade que está na própria divisão da obra, ela se dá em “movimentos” e “imobilidades”, com seus respectivos subtítulos. No entanto, em que pese o nome do primeiro grupo, tal qual a mobilidade oceânica, o poeta não sai do lugar, o movimento é do devir, o fluxo do acontecimento, o eu lírico observa. Onde há spleen há um flaneur. Mesmo quando se trata de uma viagem, não há deslocamento objetivo, o que o poeta faz é estar no centro do mundo e observar:


noutra manhã momento aeroporto

aguardo a gentileza de um outro atraso

aglomerado de gente apombada

suando nos braços digerindo fruta

um adolescente na fila atrás de mim

usa um chapéu do burguer king

e parece querer chocar com sua juventude

de palhaço frustrado

o belo e o grotesco


na minha frente

um jogador de futebol aspirante em preparo

estético para Cristiano Ronaldo

salvo engano exibe um camelo no brinco

todos devem me achar um imbecil

e nesse quesito empatamos as impressões


o avião popular demite os humanos

recém chegados e abaulados

enquanto o casal português se beija

soltam uma risadinha sardônica

histriônica novamente jônica

e com a gastrite crônica que têm os argonautas

voltam a reclamar do clima do atraso da mala

a fila a gorjeia e uma gota corre meu pescoço agora

eu penso numa cata de uvas

numa cama perplexa ou vegetal

sinto a sede que tem um peixe

e por fim imagino sombra e brisa

a triste Bahia ou o belo Recife

olho pra trás e vejo a aberração visual

o diletante que não soube escolher o chapéu

como envelheço com isso

três pontos


na mão esquerda o delírio que é amanhecer

na outra um chouriço

mais pontos


Ou então observar o movimento interno, de correntes marítimas, as iterações e os deslocamentos subjetivos:


Ser cíclico

embora também labirinto

o mar faz

com que as coisas repitam


os pássaros ainda voam

pessoas escrevem na orla

como de fato sempre ocorreu


o mar matou o tempo

controla o tempo desfeito

e se ondula eterno


hipnose é olhá-lo

mas é só dar as costas

que o tempo volta


Nas seções, que se intercalam como “movimento” e “imobilidade”, vemos portanto uma oscilação. E tanto quanto no mar, que consente as marés, mas que também se espraia ou repuxa – por outro eixo, o horizontal da evolução das ondas –, nos poemas do livro temos o primeiro movimento oscilante, das partes, e ainda este outro dos versos:


a insistência da vaga quebrando

suaviza o impacto

daquilo que empareda e rasga


O que empareda e rasga? As capas e as páginas, suponho. E talvez seja mesmo necessário suavizar o impacto das vagas. Desestabilizar, sem derrubar.


O verso livre de rimas brancas perpassa o livro inteiro, sem dar lugar aos esquemas fixos, e hipnotiza à maneira do cenário de estabilidade dinâmica da praia. O conjunto é inamovível – ao menos, sua velocidade é invisível ao olho humano –, mas as “vagas”, qual versos, ribombam e silenciam, em extensões variadas.


A liberdade do verso, para ser mais preciso, parece sujeita à força da corrente de retorno, que só é sentida pela pessoa que lê e abdica da mera observação, que põe os pés na água, o corpo na água, e mergulha no texto. Já não parece tão cândido o mar. Uma crista que rompe na altura do peito, a correnteza que arrasta e afunda os pés na areia. Quando se olha para o continente, percebe-se que o corpo, sem que o notássemos, se deslocou para um lado uma centena de metros. É preciso retornar, mas já não se volta ao mesmo ponto.


Assim também acontece com a rima. Branca, vê-se de fora, é a espuma. Lá dentro, o poeta surfa a rima consoante, principalmente na paronomásia, desferindo o estouro de sentidos novos para palavras usadas, como uma onda que se sobrepõe a outra e acelera o ponto de quebra, aumenta o volume da água, e nos desequilibra. É o efeito da leitura. Pois é o que espera o poeta:


que o mar ególatra e fascinante

faça de repente

mais do que quebrar em onda


um pouco mais

do que sobrepor-se


E o faz. Não sei se o mar inexpugnável, mas com certeza o mar de O mar enquanto.


Por que o autor portoalegrense fala do mar? A resposta está na própria pergunta: porque se sabe porto, justamente. É exímio em adentrar o mar. Em amparar o mar. Sabe, muito melhor do que o poeta litorâneo, que o mar só é contido em sua abstração. Que o real do mar é impossível. O mar é sempre uma noção. E, como plataforma avançada no oceano, o poeta tem o privilégio de ver não só as ondas, mas o horizonte em que despontam todas as vagas do microscópico grupo das coisas imensas que continuam.



Augusto Quenard, escritor e tradutor

 
 
 

Comments


bottom of page