Construções do tempo em Borges e Cortázar
- editoracontratempo
- 4 de set. de 2023
- 9 min de leitura
Flavio Aguilar
Jornalista e editor
Apesar de pertencerem a contextos diferentes, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar são frequentemente relacionados ao "boom" da literatura latinoamericana, que teve destaque nos anos 1960 e 1970. Em diversos aspectos, Borges pode ser considerado um precursor (e um influenciador) de Cortázar — assim como de outros escritores dessa geração. No entanto, há diferenças marcantes entre eles.
Em particular, ambos os autores procuraram inovar a forma do conto. Mas fizeram isso de formas diversas e com resultados diversos. Um pouco disso se expressa no tratamento e uso de certas noções de circularidade e imortalidade (ou infinito, ou ainda duplicidade), como nos contos que analisamos aqui.
A imortalidade em Borges: O Milagre Secreto
Espelhos, labirintos, tigres, livros: em sua obra, Jorge Luis Borges explorou fartamente a simbologia desses elementos, marcando com eles constantes digressões de ordem filosófica sobre os temas da imortalidade e do infinito.
O uso de tais elementos para esse fim não é, claro, uma inovação. A simbologia do espelho mágico, que permitiria ler o passado, o presente e o futuro, é tradicional na literatura islâmica. Na mitologia grega, Teseu tem no labirinto do Minotauro uma prova de morte. Associado à longevidade, o tigre serve como montaria aos Imortais na mitologia chinesa. O livro, em grau mais alto, foi utilizado como símbolo do universo em passagens bíblicas e em tradições esotéricas diversas (Chevalier; Gheerbrant, 1998).
A esses elementos também foram dados outros significados, em tempos e lugares variados. A associação entre eles, bem como sua ligação aos temas da imortalidade e do infinito, tiveram brilho próprio, portanto e entretanto, com a prosa e a poesia de Jorge Luis Borges. Um filólogo do real e do inventado, Borges soube manejar diferentes mitos e tradições filosóficas e literárias para compor um sistema rico em simbologias em torno de um assunto que parecia fasciná-lo mais que qualquer outro (Schwartz, 2017).
Borges foi leitor voraz tanto de obras literárias quanto das vidas de seus autores. Da mesma forma, foi prolífico inventor de histórias e de escritores, personagens comuns em suas obras. De pendor humanista, como demonstram os estudos que produziu e publicou sobre autores renascentistas e as homenagens que prestou em citações a escritores como Cervantes e Milton, não surpreende que tenha compartilhado com estes a preocupação com as questões do divino, da condição humana e, em último caso, da (i)mortalidade. Por praticar o ofício de escritor, teve na linguagem escrita uma forma de lidar com a própria mortalidade e de examinar as ideias que seus antecessores postularam a esse respeito.
Boccaccio, em sua Genealogia Deorum Gentilium, resume algumas das ideias que os renascentistas viriam a compartilhar, em grande medida, a respeito da poesia, que podemos extrapolar para a criação literária como um todo. A poesia seria um fervor procedente de Deus, concedido a poucas mentes — entre seus efeitos, o de cobrir a verdade com um "véu fabuloso e belo". Esse véu, que pode ser entendido como fábula, alegoria ou símbolo, serviria para proteger a verdade (sagrada) e ajudar a ensinar as virtudes ao homem (Bocaccio, 1983).
Essa visão, tipicamente renascentista, em reverência ao sagrado, também afere a importância da literatura (e das artes) para a posição em que se pretende situar o homem (o ser humano) no mundo: superior aos animais selvagens, inferior ao divino. Sofrendo certas transformações ao longo do tempo e no espaço, manteve-se a ideia de que o ser humano diferencia-se dos outros animais por sua capacidade de criar subjetividade. Ao mesmo tempo, subsistiu a crença de que a arte aproxima o sagrado do humano. Como resultado, a arte poderia relativizar no homem, em certa medida, aquilo que o separa, em última instância, dos deuses: a mortalidade.
Os renascentistas, com o resgate do pensamento greco-latino, sistematizaram em contexto diverso ideias já percorridas em diferentes culturas e por muitos séculos. A ênfase que deram à valorização da criação literária restabeleceu a literatura como forma de atualização (e permanência) da linguagem — e, assim, do humano.
Foucault abre A Linguagem ao Infinito com uma citação de Blanchot: "escrever para não morrer (…) ou talvez mesmo falar para não morrer é uma tarefa sem dúvida tão antiga quanto a fala". A linguagem escrita, por meio da literatura, é a ferramenta mais poderosa para a criação e a replicação de sentidos, como escreve Foucault, ao comentar Borges. Pela criação ou pela replicação de sentidos, a literatura desafia a morte. Se os gregos (como outros povos antigos) tinham na literatura a forma de cantar seus heróis e torná-los imortais, e tantos escritores buscaram (e continuam a buscar) a própria imortalidade por meio da fama literária (vida em posteridade), Foucault vê no final do século XVIII uma mudança na relação da linguagem com sua "infinita repetição" (2001).
Citando como exemplos Sade e os romances de terror, Foucault nota que a literatura deixa de se originar necessariamente na palavra (divina ou de tradição) no final do século XVIII, passando a operar em um vazio. Nesse sentido, a obra e a linguagem passam a se relacionar internamente, de forma transgressora. Estabelece-se uma oposição à historiografia tradicional e ao que se convencionou simbolizar com a figura da biblioteca, em que as obras se acumulam em convivência ordenada (2001).
Borges supera essa oposição ao imaginar uma biblioteca infinita, na qual se encontra tudo o que já foi ou será escrito (concebível ou apenas imaginado), em todas as linguagens. Iguala, assim, totalidade e infinito, ao mesmo tempo em que brinca com as noções de tempo e de autoria. Para expressar essa ideia, Borges usa personagens fictícios, muitos deles escritores e pensadores, que, em muitos casos, são citados como sendo reais. Da mesma forma, citam obras que nunca existiram, bem como resenhas fictícias a seu respeito. Muitos de seus contos têm formato parecido ao de resenhas literárias, comentários críticos ou notas pessoais, o que proporciona o efeito de verossimilhança pretendido e ajuda a convencer o leitor.
No conto “O Milagre Secreto”, publicado em 1944, que Foucault comenta em A Linguagem ao Infinito, Borges conta a história do escritor Jaromir Hladik, que, de frente para um pelotão de fuzilamento, recebe de Deus a chance de viver por mais um ano e concluir um livro seu que permanecia inacabado. No entanto, ele vive esse tempo apenas em seu pensamento, tendo que escrever os versos que faltam apenas com o uso de sua memória. Ao concluir a obra, que ninguém virá a conhecer, finalmente recebe as balas e morre. O personagem, fictício, é apresentado como um autor pouco conhecido, o que contribui para uma leitura do conto como cético em relação à pretensão de busca da imortalidade pelo ofício da literatura.
Borges era, além de grande escritor, um leitor voraz (e adepto das releituras). Sua obra se caracteriza, entre outros aspectos, pelas constantes referências a obras e biografias de autores que o antecederam. É recorrente, nos contos publicados em Ficções e em O Aleph, a ideia de que já está tudo escrito, o que foi sintetizado com maestria na “Biblioteca de Babel”. Desta forma, Borges parece redefinir a figura do escritor — lembremos o personagem principal de “Menard, Autor de Quixote”, que tinha a intenção de recriar Dom Quixote, linha por linha (1989).
A literatura, nos contos de Borges, é frequentemente apresentada como uma produção coletiva. Como define Foucault (1992), é um "lugar sem lugar", em que um livro abriga todos os livros passados e é nada mais que murmúrio entre tantos outros. E é por isso que podemos exercer por ela — pela leitura, pela escrita — a imortalidade.
É importante, no entanto, atentar para a forma como Borges "abre" sua narrativa para expressar em forma, não apenas em conteúdo, a ideia de imortalidade. A expressão da imortalidade, em “O Milagre Secreto”, dá-se pela duplicação. Uma duplicação tanto da narrativa, que passa a contar o término do livro por Hladik ao mesmo tempo em que conta a sua morte, quanto da condição do Hladik, que está ao mesmo tempo vivo e morto — pois as balas já foram disparadas e não há mais fuga possível. O duplo também está no ato de se contar a história da urdição de um outro livro.
Reforça-se, com isso, o caráter multidimensional do conto. Borges multiplica sua história de forma que, mesmo com o último parágrafo a decretar a morte de Hladik, em uma única linha, seca e incontornável, há uma outra narrativa que permanece possível e desconhecida do leitor. Borges consegue, com sua sobreposição de narrativas, tornar infinito um conto em que o personagem principal é executado no final.
A circularidade em Cortázar: Casa Tomada
“Casa Tomada” foi o primeiro conto publicado por Cortázar, em 1946, e é, provavelmente, uma de suas obras mais conhecidas. Trata-se de um conto especialmente representativo do que se convencionou chamar realismo fantástico, ou realismo mágico, na América Latina no século XX. A estratégia narrativa utilizada na construção deste conto também é um ótimo exemplo das técnicas que Cortázar aplicou a essa forma literária.
Neste conto curto, Cortázar vincula o perigo, o sinistro, ao espaço fechado, enquanto o espaço aberto é associado a ideias de segurança e liberdade. Não se trata, no entanto, de um conto de horror tradicional, passado em uma casa mal-assombrada. Desde o início, além de dúvidas sobre a natureza do perigo que "toma" a casa, o conto provoca estranhamento em relação às reações dos dois personagens principais.
“Casa Tomada” é formado, assim, por duas histórias. Por um lado, conta a convivência de dois irmãos que habitam a mesma casa, de posse da família há anos. Por meio da narrativa dos seus hábitos e costumes, é exposta a maneira como eles vivem e o modo como interagem. Por outro lado, o que move o conto é a relação de ambos com a casa e, fatalmente, com a presença anônima que vai aos poucos tomando conta do lugar.
Piglia (2013) diz que, no conto moderno, trabalha-se sempre a tensão entre duas histórias. Poe teria sido o precursor do conto moderno, cuja expressão mais clara é o conto policial. Nesse formato, uma história (da investigação) é contada em função da outra (do crime), e usa-se a técnica do final surpreendente para revelar essa ligação ao fim da história. No conto modernista, ou de vanguarda, também há duas histórias, mas a relação entre elas é construída de forma diversa, conforme o autor.
Se Poe trabalhasse com o enredo de Casa Tomada, talvez o final revelasse ao leitor uma explicação coerente para o mistério que percorre o conto. A explicação provavelmente estaria na relação dos dois irmãos. No caso de Cortázar, as histórias aparentemente não se tocam, do início ao fim, mas, na verdade, a história da invasão é um pretexto para contar a relação entre os irmãos. Outros autores, em outros lugares, fizeram isso. Joyce, em Dublinenses, é um exemplo clássico, citado por Piglia (1994). O que o realismo fantástico faz — e Cortázar é mestre nisso — é tornar a história superficial ainda mais absurda.
Cortázar expressa uma visão pessimista em relação à idéia central do realismo. Segundo ele, a ideia do realismo gira em torno de uma crença do escritor de que as coisas podem ser descritas dentro de um universo estável, em que a relação causa-efeito impera e a psicologia pode ser exacerbada como método explicativo para o comportamento humano. Como os escritores realistas, Cortázar também julga a realidade, mas encontra nela uma matéria disforme, maleável (1993).
Em “Casa Tomada”, o tempo cronológico é baseado em sumários, ou seja, a história é narrada com descrições parcas das cenas, o que reforça a impressão de um tempo desperdiçado pelos personagens. Impera, também, uma aparente despreocupação por parte do narrador — o irmão — conforme os acontecimentos se desenrolam.
A narração em primeira pessoa torna tudo menos crível. A irmã, Irene, é descrita por ele de forma complacente. Não se acessa, em momento algum do conto, o que Irene pensa a respeito da casa, do irmão e dos fatos que se sucedem, com sua personalidade totalmente filtrada pela visão do narrador. Como essa atitude assemelha-se à do narrador, as personalidades das personagens se complementam, o que retoma a ideia do duplo, muito utilizada no conto moderno, e já destacada no conto de Borges.
Diferentemente de Borges, no entanto, Cortázar localiza sua história em Buenos Aires, assim como fez com tantas outras, que normalmente se situam em tempos menos fantásticos que os de Borges e na banalidade das cidades por que passava o autor: Paris, Londres etc. Da mesma forma, os personagens de seus contos não são outros escritores, nem filólogos ou reis. Em “Casa Tomada”, como em muitos outros dos seus contos, os personagens que se confundem são da mesma família e estão presos a realidade banais, em que o fantástico é só um tema.
O final de “Casa Tomada” também é aberto, mas é claramente aberto. Não se explica o que tomou conta da casa nem o que aconteceu com os irmãos. Não há necessidade, já que explicar não é o objetivo do autor — como dito, essa era só uma forma de contar como se dá a convivência dos irmãos.
Considerações Finais
Borges e Cortázar não seguem os mesmos preceitos ao contar uma história, mesmo que ambos explorem recursos caros à forma moderna do conto.
Borges segue os clássicos e procura imortalizar-se ao dialogar com eles. Quanto à estrutura de seus contos, torna-os infinitos ao sobrepor dimensões narrativas, mesmo que oponha a elas um ou mais finais secos, definitivos.
Cortázar segue um tempo linear, mas que nunca termina. De uma geração posterior à de Borges, não obedece à sua tradição. Caminha sem sair do lugar, afeito aos espaços, à família, submetido ao absurdo latinoamericano.
Referências
Boccaccio, Giovanni (1983), Genealogia de los dioses paganos, Madrid, Editora Nacional.
Borges, Jorge Luis (1989), Obras completas I, Lisboa, Editorial Teorema.
Chevalier, Jean; Gheerbrant, Alain (1998), Dicionário de símbolos, Rio de Janeiro, José Olympio.
Cortázar, Julio (2013), Bestiário, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Foucault, Michel (2001), A Linguagem ao infinito In: Foucault, Michel, Ditos e Escritos III, Rio de Janeiro, Forense Universitária.
Piglia, Ricardo (1994), O laboratório do escritor, São Paulo, Iluminuras.
Schwartz, Jorge (Org.) (2017), Borges babilônico: uma enciclopédia, São Paulo, Companhia das Letras
Suárez Miramón, Ana (2011), Introducción a la literatura española, Guía práctica para el comentario de texto, Editorial UNED.
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