O tempo do Antropoceno e a literatura
- editoracontratempo
- 11 de mar. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 12 de mar. de 2024
Antonio Barros, doutor em Teoria Literária e professor da UFRGS
Hoje é dia 9 de março de 2024, e escrevo a vocês diretamente do futuro. Não é que eu tenha encontrado por acaso um DeLorean prateado e embarcado em uma aventura ao estilo Marty McFly. Escrevo diretamente do futuro porque ele simplesmente chegou. Não, não sou um visionário ou profeta. O futuro chegou não apenas para mim, como num sonho, no tarô ou na borra do café. Ele chegou para todos nós, na verdade. E, quando digo “nós”, não me refiro exclusivamente a vocês, leitores, leitoras e eu. Nem tão somente a mim, a vocês e a nossos parentes e concidadãos, ou inclusive à nossa espécie humana. O futuro chegou para um “nós” que inclui árvores, bichos, minérios, oceanos, rios, atmosfera...
É só olhar o noticiário do ano passado: mais de 100 mortos nos incêndios ocorridos no Havaí em agosto; ao menos 14 mortos nas enchentes de setembro na Grécia; quase 50 mortos em decorrência do ciclone que devastou o Rio Grande do Sul no mesmo mês; 2 mil mortos nas enchentes na Líbia, também em setembro; metade da população do planeta enfrentando trinta dias ou mais de temperaturas extremas na primeira metade do ano passado... Todas estas são notícias do futuro, mesmo tendo ocorrido nos últimos meses. Na verdade, o futuro se antecipou e deu uma parte de si de “presente” ao presente. E todas elas são notícias do Antropoceno.
No Antropoceno, o tempo não segue uma linha reta. A noção de que vivemos numa seta que avança inexoravelmente para frente não parece cabível nos dias de hoje. Se, antes, era viável pensar no presente e no futuro como instâncias separadas do passado – que, por sua vez, determinava as condições do presente e orientava as possibilidades do porvir –, hoje essa ilusão se perde em um tempo multiescalar.
Agora, nosso trabalho, nosso lazer, nossa vida em sociedade dependem de consumirmos e liberarmos na atmosfera o carbono dos restos mortais de animais e vegetais que se decompuseram há milhões de anos. Reviramos a terra em busca de minérios que se formaram no núcleo das estrelas há bilhões de anos, só para fabricar os componentes eletrônicos indispensáveis à vida cotidiana. Alteramos ecossistemas inteiros, diminuindo florestas milenares, mudando o curso e a vazão dos rios, pisoteando e esterilizando o solo, adulterando a composição dos oceanos, redefinindo em um intervalo de poucos séculos as condições de vida formadas no Holoceno.
Fazemos, portanto, o passado coexistir com o presente. E com isso trazemos o futuro para mais perto da gente, à medida que precipitamos o fim da existência mediante a nossa atividade econômica. Passado, presente e futuro coexistem numa espécie de “tempo concentrado”, cuja densidade talvez seja impensável e até mesmo irrepresentável. O nosso presente é formado pelo passado, que retorna emblematicamente na figura do carbono, e pelo futuro, que se anuncia na figura da catástrofe.
Pois o Antropoceno é justamente isso: uma era geológica – em que pese a proverbial relutância dos geólogos. A era em que os seres humanos, através de sua atividade social, econômica, comercial e política, alteraram drasticamente o equilíbrio climático da Terra, atuando como uma força cósmica ou geológica tão potente quanto as rajadas de vento solar, as chuvas de meteoros, as erupções vulcânicas ou as movimentações das placas tectônicas. A humanidade torna-se, assim, tão vasta quanto o próprio planeta (ou o cosmos?), num devir-natureza que, curiosamente ou não, decorre justamente de sua reivindicação de excepcionalidade frente às demais criaturas.
Quanto mais a humanidade repele sua condição de habitante da Terra, de apenas um elemento numa cadeia mais ampla da vida e do ecossistema, mais sua possibilidade de sobrevivência é diminuída. Contraditoriamente, quanto mais a humanidade se eleva como uma força cósmica, menos ela se torna capaz de decidir seu próprio futuro, uma vez que se enreda definitivamente na malha da vida natural, não para salvá-la, mas para contribuir para a sexta grande extinção em massa. O Antropoceno é a etapa final da vida humana na Terra. E não faltam razões para crermos nisso...
O que falta, porém, é a cognição. Porque, embora estejamos escandalizados com as notícias do Antropoceno, não estamos em condições de entendê-las devidamente. Então, quando essa nova era geológica diz “Eis-me aqui”, mostrando a sua face, nós ficamos estupefatos, pois não sabemos o que lhe responder. “Olá”? “Seja bem-vinda”?... Não, nós não a queremos aqui. “Obrigado”?... Não, nós não aceitamos seu presente. E, no entanto, ela se faz inexoravelmente presente. Nós não a entendemos porque ela bagunça nossa capacidade de encadeamento temporal dos fenômenos.
Perdemos a habilidade de relacionar os fenômenos naturais extremos ocasionados pelo aquecimento global com sua origem nas formas de organização econômica e política mundiais. E, por isso, insistimos numa forma de consciência atrasada em relação ao futuro que se apresenta. Então, o último ciclone e o próximo incêndio florestal, independentemente de suas proporções, não serão atribuídos ao despejo de carbono na atmosfera, ao extrativismo, à poluição. Serão, muito provavelmente, de responsabilidade da “natureza”, essa instância rival do humanismo, selvagem, carente de domínio. Não faltarão magnatas donos de startups para nos tranquilizar e nos reconfortar com seu otimismo ingênuo e ao mesmo tempo tão draconiano. Eles proverão a consciência que aliviará o choque, aos nos dizerem “Não há nada para ver aqui, circulando!”, quixotescamente tentando nos devolver a cognição e a sensibilidade embotadas de uma ciência e uma tecnologia incapazes de nos reorientar.
É por isso que algumas boas almas redobram a aposta na estética. “Ora, se a ciência e a tecnologia não nos dão a chave, a literatura vai nos salvar”, dirá esse outro otimista, menos draconiano do que os anteriores, porém talvez não menos ingênuo. Sim, é certo que, desde antes do anúncio do Antropoceno – possivelmente até mesmo antes de sua gestação no período da Revolução Industrial ou da economia de plantation –, a literatura desempenhou o seu papel na coesão social e na construção do futuro.
De maneira geral, os escritores sempre se envolveram com uma espécie de “modelagem” da sociedade ao longo do tempo. Basta pensar, por exemplo, no que significaram os romances romântico e realista para o desenvolvimento do capitalismo, para a cultura urbana e para a formação do Estado-nação. Nas páginas dos livros, consolidaram-se uma sensibilidade e uma cognição marcadas pela experiência da linearidade do tempo: o que podia acontecer ao herói ou heroína do romance dependia, em grande parte, da lógica dos possíveis que, por sua vez, era limitada pelas relações sociais e materiais que envolviam as personagens. Estas, constrangidas pelas paisagens naturais, pelas instituições civis, pelos modos de produção e formas de trabalho, protagonizaram inúmeras histórias de amor e superação que consolidaram a percepção de que os destinos dos humanos, suas angústias e anseios, eram o que movia o mundo.
Assim, o trabalho dos romancistas ajudou a efetivar uma consciência e uma sensibilidade coletivas nas quais passado, presente e futuro apareciam relativamente organizados em nexos causais que, entre outras coisas, amalgamavam a suposta primazia do humano frente à natureza. Era o “tempo da História”, no qual a lógica dos possíveis dos romances romântico e realista sustentava um enquadramento segundo o qual o futuro era aberto ao presente na mesma proporção do envolvimento dos protagonistas com a ação privada e pública. Mesmo quando o desfecho era trágico ou inoportuno, o que vigorava era a consciência de que o destino da Terra era dependente do (e congruente com o) destino dos personagens. Histórias eram aquilo que acontecia exclusivamente com os humanos, enquanto a natureza, estável, imutável e sempre aí como espectadora, servia de paisagem, moldura ou pano de fundo. Essa estética sempre se apoiou na regularidade climática enquanto, no âmbito socioeconômico, o mundo era drasticamente alterado.
Agora que o futuro chegou, essas histórias perderam grande parte de seu sentido. Não porque os humanos mudaram seus hábitos ou sua percepção de si e da natureza. Ocorre que nesse ínterim o Antropoceno vem substituindo o equilíbrio climático do Holoceno por uma imprevisibilidade e uma maior frequência de eventos extremos, de modo que a natureza não é mais um agente passivo na história da humanidade.
O que se lê como “notícias do fim do mundo” pode perfeitamente ser interpretado como a “vingança de Gaia”: a Terra, convulsionada pela ação humana, passa por um estágio de instabilidade no qual tempestades, ondas de calor, grandes inundações deixam de ser eventos insólitos para coexistir com as atividades humanas em um novo regime climático. Humanidade e natureza imbricam-se de tal modo que se torna impossível dissociá-las inteiramente: o que ocorre no plano climático tem origem na longa história de devastação natural perpetrada pelo ser humano; e o que surge como catástrofe ambiental no âmbito humano obriga-nos a colocar a natureza como um elemento a mais no cálculo socioeconômico e no contrato social. E, ao que tudo indica, a literatura ainda não encontrou um registro eficiente para organizar essa nova experiência no plano estético.
Isso porque a nossa sensibilidade estética, pelo fato de estar muito presa à simetria Natureza-Cultura – segundo a qual a natureza consiste em um âmbito em que as leis são imutáveis e perenes, indiferentes à ação humana, ao passo que a cultura é aquilo que decorre das relações humanas em sua formação simbólica –, não é capaz de refletir a intrusão de Gaia. O pensamento estético é, para todos os efeitos, um produto do modo de vida ocidental, que sempre rivalizou e tentou suprimir outras formas de pensamento mediante a expansão colonialista. Com isso, o animismo, que foi obliterado e dizimado, teve um lugar muito marginal na história da arte e do pensamento estético até hoje.
Porém, neste momento em que o planeta se mostra como uma entidade capaz de alterar os destinos da humanidade, a literatura, como uma espécie de “reserva mítica” de pensamento, capaz de redefinir os rumos da cultura, é convocada para tirar do ostracismo formas narrativas e histórias de vida que se aproximam do pensamento animista. É por isso que há, hoje em dia, um investimento notável em livros que de alguma forma trazem de volta a imanência e promovem uma equivocação proposital entre as substâncias humana e animal ou vegetal.
Os exemplos são muitos: Ficções amazônicas, de Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar; Escute as feras, de Nastassja Martin; o novo gótico sulamericano, de Mariana Enriquez, com Nossa parte de noite, e Samanta Schweblin, com Pássaros na boca; A vegetariana, de Han Kang; ou A cachorra, de Pilar Quintana. Em todos esses livros, o pensamento estético parece dar um derradeiro salto dialético, quase uma busca por um Iluminismo ou Humanismo ulterior, que possa dar conta ao mesmo tempo da estupefação diante do Antropoceno e, quem sabe, nos imbuir de sentimentos e emoções mais conformes a essa nova era geológica.
Se, por um lado, redobrar a aposta nas mirabolantes tecnologias parece ser uma via sem saída, continuar acreditando na capacidade da Estética de transformar a cultura parece ser, ainda, o último reduto da ingenuidade romântica que também nos trouxe até aqui. Mesmo que assim seja, ao menos desse modo essa ingenuidade cede espaço para outras formas de pensamento e afecção, permitindo, então, uma reconfiguração de nosso aparato sensível. Se isso vai nos tirar da catástrofe? É pouco provável... Em todo caso, alea jacta est [a sorte foi lançada].
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