top of page
Halftone-Dot-Textures-2.jpg

contrablog

“No puedo escapar de mi”: pensar a escritura a partir de "Nadadores lentos" de Santiago Loza

  • Foto do escritor: editoracontratempo
    editoracontratempo
  • 15 de set. de 2023
  • 8 min de leitura

(ou notas sobre dar credibilidade à ficção através do diário)


Rodrigo Gonçalves Lima

Doutorando em Estudos Literários pela UFRGS

A tentativa de explicar o inexplicável leva à tentativa de aqui estar.

Preferiria não escrever, quando na verdade preferiria fazê-lo.

Pensei numa boa maneira de resumir o ato de escrever,

“se não me perguntarem, eu sei, mas se me perguntarem, não sei explicar”.

Como se relacionar com a escritura? Julio Ramón Ribeyro, na introdução do seu livro de contos “Ausente por tempo indeterminado”, enuncia dez preceitos para a escritura do conto, os quais ele diz serem aleatórios e vinculados ao seu próprio fazer literário, mais do que uma proposta de poética do conto. Apresentado o decálogo, o escritor finaliza esse preâmbulo com o seguinte conselho sobre os tais mandamentos: “O mais aconselhável é violá-lo de tempos em tempos, como eu mesmo fiz, ou então uma coisa melhor: inventar um novo decálogo”[1]. Apropriar-se dos preceitos de outros para então os infringir e criar os seus; conceber o próprio manual de escritura talvez seja parte desse incessante enfrentar e reformular a tentativa de escrever. É dessa maneira que tomo o aconselhamento de Ribeyro, compreender a própria relação que se estabelece com a escritura – independentemente do tipo de texto ou daquilo que se pretende escrever – para então se iludir com a convocação de normas que logo ali serão refeitas. Relembro um dizer de Marguerite Duras: “escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever”[2], pois por mais que alguém se questione sobre aquilo que desejaria escrever, somente é possível saber durante ou depois de fazê-lo. É preciso correr esse risco: escrever o que seja, mas escrever. Enfrentar a escritura, propor uma provisória familiaridade a esse imprevisível embate e, assim, compreendê-la como um movimento contínuo e presente – o que me remete à escritura do diário. Pensar a relação que se constrói com a escritura a partir do diário, esse espaço no qual se reafirma a incapacidade de escrever, para então fazê-lo.


No livro “Nadadores lentos: uma escritura provisória”, do argentino Santiago Loza, o escritor não tenciona um diário em sua cotidianidade, como esse tipo de texto costuma apresentar-se, mas propõe uma espécie de diário de escritura. Expõe seus nós com o escrever e a maneira com a qual esse encontro compõe sua vida, do tempo de criança, quando escrevia para criar uma realidade outra, ao período adulto, quando tem no escrever o seu sustento. Contudo, a sequência de tais acontecimentos não recai em uma linearidade temporal, brotam em diferentes cenas que se descobrem umas nas outras, conforme a própria leitura acontece.


“Nadadores lentos” é a maneira pela qual são denominados os ocupantes da primeira raia da piscina, que fica colada à borda. Olhá-los apenas como aqueles que estão aprendendo a nadar, ou não tem capacidade de apresentar um bom desempenho, pode ser um impulso inicial, contudo, Santiago relembra que também são aqueles que nadam sem a pressa da performance, tampouco com a necessidade de competição: estão somente a nadar por nadar. Da mesma maneira Santiago entende a relação com a escritura: escrever por escrever, ausente de qualquer exigência de resultados. Nadar lento, escrever lento. “Nadadores lentos, nadar porque sí, escribir porque sí, a falta de motivos, es mejor nadar o escribir, es mejor entregarse a esse vacío”[3]. Entregar-se a incerteza daquilo que está por vir. Escrever sem ser um escritor, ao melhor estilo do campeão de natação kafkiano que não sabia nadar, um atletismo sem atleta, um escritor que não sabe escrever: “Escribir es descobrir que no sé como se escribe”[4], que não se é um escritor ainda, e talvez nunca seja, porém mesmo assim não deixar de escrever. Os nadadores lentos lembram que um escritor está em constante processo de tornar-se um escritor, e dessa maneira reafirmam a desimportância do fim.


Além de romances, peças de teatro e roteiros de cinema, Santiago também ministra oficinas de escrita – o que não o isenta de questionar as próprias aulas que leciona, uma vez que ele mesmo entende o escrever como algo além da esfera do ensinável. Apesar de compreender a importância de oficinas práticas no desenvolvimento daqueles que se propõem a escrever, o escritor argentino não deixa de expor um sentimento de incômodo: sentir-se uma fraude, exatamente por tentar ensinar algo que no fundo está fora do alcance daquele que leciona. “La escritura se impone o te repele”[5], por mais que alguém participe de oficinas, busque fórmulas, leia manuais, não existe um método para escrever; ao fim a escritura acaba impondo-se, por tornar-se algo compulsório com o qual não se pode, e não se consegue, manter distância. Recordo de Ricardo Piglia, ou Emilio Renzi, em seus diários: “como alguém se transforma em escritor, ou é transformado em escritor? Não é uma vocação, imagine, também não é uma decisão, mais parece uma mania, um hábito, um vício, você deixa de fazer isso e se sente mal, mas ter que fazê-lo é ridículo, e acaba se tornando um modo de viver (como qualquer outro)”[6].


Aqui me parece importante compreender que a ficção, mesmo em um diário, atravessa incessantemente a escritura. Talvez seja preciso retirar, desse tipo de texto, a exigência do verdadeiro e permitir que diferentes camadas de realidade encontrem-se e desencontrem-se: “é preciso ensopar-se de realidade”[7] para forçar as bordas a novos limites. Retorno a Piglia, e aos “Os diários de Emilio Renzi”, que, desde o título[8], já iniciava um processo de forçar as fronteiras do diário e a veracidade muitas vezes pressuposta a esse tipo de texto: “Como continuar um diário que tem por objetivo as ilusões de quem o redige e não sua vida real?”[9]. Aquele que escreve pode dotar a realidade de sentido para além do cotidiano suportável ou prazeroso? Santiago Loza responde “pienso que lo que definen como autoficción o autobiográfico es un fraude. Todo es un invento. Nada sucedió realmente”[10]. Talvez seja essa a vantagem do infortúnio de fabricar-se escritor: falsear a própria narrativa, porque, de acordo com Piglia, “en la escritura se pueden hacer borradores”[11]. Atualizar a experiência cotidiana é invocar a imprudência dos borradores para encontrar desvios. O diário é passível de corrupção, e o faz ao criar novos desvios para uma vida outra – falsos diários para vidas vividas e vivíveis. Escrever tem esse privilégio sobre a vida, a possibilidade de alterar o vivido. É preciso pensar a escritura como “el lugar donde los borradores de la vida son posibles”[12] – os “borradores”, ou “mata-borrões”, criam a possibilidade de transformar, por meio da escritura, aquilo que foi vivido. Para Piglia, a escritura tem esta prerrogativa sobre a vida, a condição de tornar o viver um acontecimento em constante alteração.

Traçar linhas com o cotidiano, e não sobre, gera possíveis vitórias em meio às insistentes derrotas diárias. Escrever não para representar uma vida, e sim para seguir as linhas informes de uma vida. Tratar o diário dessa maneira afeta a compreensão daquilo que constitui um diário. Permite compreender que as fronteiras desse texto estão constantemente sendo forçadas pela ficção. No ensaio “O conceito de ficção”, Juan José Saer compreende a ficção neste espaçamento aberto dentro do verdadeiro. Saer fala em mergulhar no lodo composto pelo empírico e o imaginário, o que me remeteu à imagem do escritor vestindo uma roupa de mergulhador, ao melhor estilo de Dustin Hoffman em “A primeira noite de um homem”, para adentrar a real piscina com um cilindro de gás falso. “Ao dar um salto para o inverificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento”[13], diz Saer. Mas o salto não é para longe da realidade, é para adentrar ao território lamacento no qual a realidade se faz presente assim como o falso. Não é um distanciamento de um ou de outro, é uma aproximação à sua maneira, pois é a maneira da ficção existir. Esse duplo caráter da ficção não é uma ode ao falsário, tampouco uma repulsa ao verdadeiro – é uma postura ante uma maneira outra, específica, de lidar com o mundo: apropriar-se desse tumulto entre verdadeiro e falso para modelá-lo à sua maneira.

Busco outros exemplos, chego a Mac e seu contratempo, de Enrique Vila-Matas, no qual é apresentado um personagem que, desejoso de transformar-se em um escritor, impõe-se a tarefa de reescrever um livro. Então passa a escrever todos os dias para ver o que acontece e, consequentemente, inicia essa jornada com uma espécie de diário de reescrita – vale lembrar que o livro a ser reescrito flerta com uma obra do próprio Vila-Matas, borrando a supostamente evidente demarcação da ficção e do real. Durante grande parte do livro esse personagem insiste em dizer que aquilo que está escrevendo não é um romance, busca uma fuga desse gênero, uma escritura real no encontro com o diário. Porém sua vida cotidiana – entrecortada muitas vezes pela vida de Vila-Matas – torna-se cada vez mais atravessada por acontecimentos romanescos. Em “O romance luminoso”, Mario Levrero escreve a primeira parte do seu livro como um diário do período em que, tendo recebido uma bolsa da Fundação Guggenheim para terminar o romance que havia começado em 1984, enfrenta os dias e a escritura dessa obra financiada pela bolsa. Essa parte, reservada ao diário, compõe quase a totalidade do livro, e nela está dissecada a obsessão, a preguiça, o adiamento, o enfrentamento, a repetição, a convivência com a escritura, e consigo mesmo, entre diversos outros estratos do escritor. É apenas na segunda parte que apresenta o romance propriamente dito. Mesmo sendo um livro publicado postumamente, e portanto tido como inacabado, Levrero sempre insistiu que a obra era composta da união das duas partes, e não como escritos diferentes.

O diário é um percurso incerto, exibe as agruras cotidianas e expõe a necessária insistência diante da tentativa de escrever. A vida exige seguir acontecendo, não é possível suspendê-la para escrever: “no puedo escapar de mi”[14], afirma Santiago Loza. Contudo, é preciso tornar o enfrentamento da escritura uma necessidade, e assim já não mais se reconhecer a não ser diante dela, diariamente. Certa vez li algo sobre a maneira para recordar de si ser a mesma para esquecer: escrever[15]. O escritor deve recordar daquilo que é quando não é aquele que escreve, de seus viveres cotidianos, momento em que vive alguma verdade, e não durante o infortúnio do escrever, afundado em farsa. Com textos curtos, Santiago traz episódios de sua história nos quais a presença da escritura é a linha principal. Esses encontros o provocam a pensar a escritura e, consequentemente, pensar sobre si mesmo, “vaya donde vaya me sigo llevando”[16]. A escritura, ao modo da tarefa de Sísifo, não permite ao escritor deixar de carregar a si mesmo ao longo do processo; ter essa consciência é apropriar-se de seu destino, e, ao tomá-lo para si, montar, desmontar e remontar de uma maneira outra: tramar um destino outro para si. Santiago Loza revela aquilo que chamou de “falha”, que seu corpo passou a apresentar; o escritor desenvolveu reumatismo com o passar dos anos, e é no encontro com a água que essa dita “falha” torna-se ausente. Nadar corrompe a vida e cria uma nova maquinaria para esse corpo que passa a apresentar um funcionamento outro em frente a necessidade de reinvenção, assim como a escritura corrompe a vida ao construir uma “realidad en lo imposible”[17].



Referências


[1] Ausente por tempo indeterminado. RIBEYRO, Julio Ramón.

[2] Escrever.

[3] “Nadadores lentos, nadar porque sim, escrever porque sim. Na falta de motivos, é melhor nadar ou escrever, é melhor entregar-se ao vazio”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[4] “Escrever é descobrir que não sei como se escreve”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[5] “A escritura se impõe ou te repele”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[6] Anos de formação: Os diários de Emilio Renzi. PIGLIA, Ricardo.

[7] Detetives Selvagens. BOLAÑO, Roberto.

[8] O escritor argentino se chama Ricardo Emilio Piglia Renzi. Piglia em alguns de seus romances apresenta um personagem nomeado Emilio Renzi. Joga com esses outros dois nomes, que também são seus, para explorar essa região composta de realidade e de ficção.

[9] Anos de formação: Os diários de Emilio Renzi. PIGLIA, Ricardo.

[10] “Penso que o que definem como autoficção ou autobiográfico é uma fraude. Tudo é uma invenção. Nada realmente aconteceu. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[11] “A escritura permite rasuras”. Crítica y ficção. PIGLIA, Ricardo.

[12] “O lugar onde as rasuras da vida são possíveis”. Crítica y ficção. PIGLIA, Ricardo.

[13] O conceito de ficção. SAER, Juan José.

[14] “Não posso escapar de mim”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[15] O espaço literário. BLANCHOT, Maurice.

[16] “Vá aonde vá sigo me carregando”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.

[17] “Realidade no impossível”. Nadadores lentos. LOZA, Santiago.


Comments


bottom of page