O que leremos nos próximos meses
- editoracontratempo
- 23 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
Quais livros têm gerado mais interesse nos leitores? Basta uma visita rápida a uma livraria na área de embarque ou shopping mais próximo para obter possíveis respostas. Uma conversa de elevador com o ChatGPT provavelmente seguiria pelo mesmo caminho.
Você pode citar clássicos contemporâneos da autoajuda, obras religiosas ou manuais de finanças pessoais, por exemplo. Romances infantojuvenis, certamente. Já as biografias parecem ter perdido um pouco de vida, mas ainda vendem o suficiente.
Tudo isso já está aí há bastante tempo. No entanto, outros temas, visões e recortes do mundo têm conquistado uma certa repercussão recentemente — e podem se tornar mais visíveis futuramente. Bom, pelo menos é o que desejamos que aconteça. Falamos sobre isso a seguir.
Outra literatura brasileira
A literatura nacional de ficção ganhou fôlego nos últimos anos. Isso fica claro quando escritores(as) locais de romances e contos ultrapassam as dezenas de milhares de cópias vendidas. E o fenômeno pode ser explicado por motivos que vão além da qualidade das obras e de seus autores — que não é desprezível, logicamente.
Em primeiro lugar, os leitores têm se interessado mais por questões sociais. Por isso, vozes antes marginalizadas ganharam relevo. Isso inclui autores que tratam de temas sensíveis, como relações raciais e étnicas. Escritoras mulheres também são cada vez mais lidas. O que se lê é importante, e quem é lido(a), também.
A tendência não se restringe ao Brasil. Pelo contrário, é visível em países da Europa e nos EUA. No entanto, ganhou contornos próprios por aqui. Um exemplo disso são os traços regionais de algumas obras, como o Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Em um país que vive uma longa sucessão de crises em meio a diversas formas de desigualdade, a questão da identidade parece intransponível.
Uma nova “ola”
Os brasileiros parecem ler cada vez mais escritores locais. No entanto, há também uma nova “ola” de autores (e autoras) nos países vizinhos, como Argentina e Colômbia, que tem renovado o interesse pela literatura latino-americana.
Contudo, ao contrário do que ocorreu durante o boom literário dos anos 1960 e 1970, as mulheres são agora protagonistas. Os principais nomes já publicam há alguns anos e têm sido premiadas dentro e fora de seus países. Exemplos notáveis são Mariana Enríquez, autora de As Coisas que Perdemos no Fogo, e Pilar Quintana, que escreveu A Cachorra.
O fantástico ainda está presente, graças a um gosto atualizado pelo insólito. Porém, concorre e perde para a brutalidade cotidiana. As memórias das ditaduras que ainda assombram o continente são um tema recorrente, mas se misturam a questões como a violência contra as mulheres e o terror institucional vigente na região.
Palavra migrante
O tema da migração não tem muito destaque no Brasil. No entanto, tende a se tornar cada vez mais relevante a nível mundial. Principalmente, em países que presenciam deslocamentos humanos em grandes proporções.
Os relatos sobre a migração, ficcionados ou não, oferecem uma perspectiva importante sobre a experiência de deslocamento, adaptação e construção de identidade em terras estrangeiras. Abdulrazak Gurnah, nascido em Zanzibar e radicado no Reino Unido, recebeu o Nobel de Literatura em 2021 justamente pela forma como aborda essa questão em livros como Paraíso.
O tema surge ainda como caminho possível para a consecução de uma literatura decolonial. Isso ocorre principalmente no caso dos autores provenientes de antigas colônias que vivem — e escrevem — nas ex-metrópoles.
Relatos de guerra
Narrativas que retratam experiências de guerra sempre ocuparam um lugar importante na literatura. Isso inclui desde obras de não ficção, trazidas à vida por autores que vivenciam conflitos em primeira mão, até histórias ficcionais, mas extremamente vívidas — Homero está aí para mentir.
Essas histórias não apenas expõem os horrores do conflito armado, mas também exploram os aspectos emocionais, psicológicos e humanos das pessoas envolvidas. A guerra entre Rússia e Ucrânia e outras fontes de tensão recentes, como o crescimento da extrema-direita, tendem a gerar um interesse crescente sobre o tema.
Obras como A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, de Svetlana Alexijevich, e A Mulher Como Campo de Batalha, de Matei Vişniec, mostram que é possível trazer novas luzes para esse assunto tão primitivo.
O antropoceno
A crescente conscientização sobre as mudanças climáticas e os desafios ambientais têm refletido na literatura contemporânea. Bebendo na discussão sobre o Antropoceno, diretamente ou indiretamente, os autores exploram os efeitos da nossa relação com o meio ambiente.
Muitas vezes, essas obras mesclam elementos de distopia e realismo para criar narrativas pouco otimistas. Em outros casos, o foco está nas relações interespécies, na abertura para outras cosmologias e na reconstrução de laços em situação de precariedade. O resultado disso é uma literatura que provoca a reflexão sobre o futuro dos múltiplos seres vivos e do nosso planeta em evidente crise.
Pode ser difícil definir quais livros se encaixam nessa categoria, inclusive por ela resistir a se tornar uma categoria estética. Um sucesso recente, porém, foi A Vegetariana, da sul-coreana Han Kang, ou ainda Sobre os Ossos dos Mortos, de Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2018. Em solo nacional, temos atualmente os exemplos de O Deus das Avencas, de Daniel Galera, e de O Manto da Noite, de Carola Saavedra. Outras obras que costumam aparecer relacionadas à temática do Antropoceno incluem desde A Estrada, de Cormac McCarthy, até Solaris, de Stanislaw Lem, romance de ficção científica adaptado ao cinema tanto por Andrei Tarkovsky como por Steven Soderbergh.
Velhas novidades
Juan Onetti disse certa vez que os críticos são como a morte — às vezes demoram, mas sempre chegam. Com o acesso crescente à informação, essa afirmação tem se mostrado ainda mais certeira. No entanto, em tempos de constante revisionismo, um novo olhar também pode trazer visões mais positivas sobre autores e suas obras.
A chilena Gabriela Mistral, por exemplo, foi vista por muito tempo como uma poetisa católica e conservadora. Nos últimos tempos, foi revalorizada como intelectual progressista, após uma releitura de sua vida e obra. Algo semelhante ocorreu com Rosalía de Castro, expoente da poesia galega.
À medida que certos temas passam a ter destaque e os nossos valores se transformam, não são apenas novos autores que ganham evidência. Para o mal e para o bem, podemos sempre voltar ao passado para compreender o que nos move hoje.
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