Poe: poesia, prosa, verdade e beleza
- editoracontratempo
- 22 de ago. de 2023
- 8 min de leitura
Davi Alexandre Tomm.
Doutor em Teoria Literária e Tradutor.
Edgar Allan Poe é bastante conhecido como um escritor de contos de mistério, de terror e de horror. Talvez possamos dizer que, atualmente, ele é tão mais conhecido por seus contos, que toda a outra faceta de sua obra foi esquecida, ou, ao menos, relegada – sua poesia, crítica e ensaísmo. Sejamos sinceros, Poe se tornou tão icônico, no nosso tempo, como autor de contos, que provavelmente muitos dos que o leem hoje nem mesmo sabem que era tão poeta quanto contista – e devem saber ainda menos a quantidade de material crítico que ele produziu, entre ensaios, resenhas, cartas e anotações, nas quais discute suas ideias sobre literatura, poesia, romance, conto; sobre a beleza e a verdade. E para tornar a situação ainda mais irônica, quem lê esses textos descobre que ele considerava a poesia como mais elevada que o conto e, mais ainda, que o romance.
Mas a intenção aqui não é fazer uma defesa da poesia de Poe em detrimento de seus contos; não seria nada proveitoso nem construtivo. A ideia também não é aprofundar-se nos escritos de Poe e exaurir a discussão sobre suas ideias poéticas e literárias – muito já se escreveu sobre isso. Pretendo, antes, fazer um rápido sobrevoo por algumas de suas concepções a respeito da poesia, apresentando sua visão sobre a diferença entre poema e prosa.
Já dizia Octavio Paz, referido no texto de Eleno Giordani, neste mesmo blog, que o poema é a realização em palavras, é o material; enquanto a poesia é aquilo que está fora do livro, pode estar em qualquer parte, aquilo de caráter insubstancial que tende ao transcendental, aos enigmas intangíveis da beleza. Poe também faz uma diferenciação, que é central para entendermos sua noção de poesia. Essa distinção não é facilmente traduzível, pois não é apenas entre poesia e poema, como a de Paz, mas entre Poesia como “Poesy” e poesia como “poetry”.
Segundo ele, o ser humano tem uma “sede insaciável” pela beleza, que “pertence à essência imortal da natureza humana”, e que é o primeiro elemento da “Poesia”; o segundo sendo “a criação da Beleza”, que, combinado com o primeiro, é “a essência de toda Poesia”.
No caso acima, o que ele chama de “Poesia” está, em inglês, como “Poesy”; é uma “abstração… aplicável em vários estados de espírito”, ou um “sentimento” que pode ser desenvolvido em diferentes manifestações artísticas, como a escultura, arquitetura, pintura, dança, música e, até mesmo, nos jardins paisagísticos. Poesia como ‘poesy’, então, é o mesmo que “sentimento poético”. A “poetry”, porém, é “a Poesia das palavras”, ou seja, é uma dessas manifestações artísticas do sentimento poético, da Poesia [poesy], e é, especificamente, “a Criação Rítmica da Beleza”. Ou seja, o poema, que é o gênero da poesia [poetry] das palavras, só pode ser uma criação rítmica da beleza.
E o que é a “Beleza” para Poe? Ela também se dirige ao intangível, ao transcendental – como para Paz. O instinto humano, a nossa sede pela beleza, não para nas coisas do mundo, mas vai além, ao suprassensível, em busca das questões da eternidade e imortalidade. A beleza é justamente o prazer mais alto e mais nobre do ser humano; ela é busca pela harmonia e é inimiga da deformidade e da desproporção, ou seja, inimiga do vício.
Poe divide a mente em três ocupações: “intelecto puro, gosto e sentido moral”; o objetivo do intelecto é a Verdade; da moral, é o Dever; do gosto, é a Beleza. Esta última tem apenas “relações colaterais” com os outros dois. Para “transmitir ‘a verdade’”, precisamos ser “perspicazes, precisos e concisos”, além de “calmos, desapaixonados, desinteressados”, mas essas são justamente as qualidades contrárias ao poético.
É a partir dessa divisão que ele afirma: “A Beleza é a província do poema”. Ou seja, o poema habita a beleza, é dela que ele se alimenta e deve tratar. O dever e a verdade só entram de modo colateral no poema, e até podem ajudar a promovê-lo, mas nunca como objetivo final, nunca se sobressaindo à beleza. Poe, inclusive, chama de “heresia do Didatismo” a tendência de poetas norte-americanos de sua época que defendiam que a poesia devia educar moralmente. A verdade pode até mesmo ajudar a descobrir uma harmonia onde antes não era vista, mas o prazer causado por isso se refere apenas à harmonia, e não à verdade.
Mas, então, a prosa não teria essa mesma relação com a Beleza? Para entendermos um pouco melhor essa questão, cito um trecho de uma carta de 1831:
“Um poema, em minha opinião, opõe-se a uma obra de ciência por ter, como seu objetivo imediato, o prazer, não a verdade; ao romance, por ter como objetivo um prazer indefinido em vez de definido, sendo um poema apenas na medida em que esse objetivo é atingido; o romance apresentando imagens perceptíveis com sensações definidas, a poesia [poetry] com sensações indefinidas, para o que a música é essencial, já que a compreensão do doce som é nossa concepção mais indefinida. A música, quando combinada com uma ideia prazerosa, é poesia [poetry]; a música sem ideia é simplesmente música; a ideia sem a música é prosa desde sua própria definitividade”.
Vemos que a poesia como poetry, ou seja, a poesia em palavras, tem sua ligação peculiar com a música, afinal, como vimos antes, ela é criação rítmica da beleza. Além disso, o poema tem como objetivo um prazer definido, que é justamente o excitamento elevante da alma, que somente a beleza consegue causar. É interessante notar que Poe defende que a obra de arte deva ser julgada pelo efeito que produz e não pelo tempo que leva para produzi-lo. E o efeito que o poema deve produzir é o de excitar a alma, fazendo-a elevar-se; o valor de um poema é proporcional a esse excitamento. Esse prazer é causado, de modo mais forte e mais elevado, justamente pela beleza.
Chegamos aqui ao tão conhecido princípio que Poe apresenta, em especial em “A Filosofia da Composição” (mas também em vários outros textos), de que o poema (e o conto) deve poder ser lido em um intervalo de tempo em que as obrigações da vida não nos obrigue a interromper a leitura. Não há como não lembrar de Derrida, citado no texto de Eleno, para quem a poesia deve ser breve, independente da sua extensão. No caso do filósofo argelino, isso se liga à questão da memória. Para Poe, a extensão do poema tem a ver justamente com o efeito que ele deve causar: o excitamento elevante. Todo excitamento, por uma questão até física, é transitório, não podendo, então, ser mantido por obras que exijam muito tempo de leitura. Assim, poemas muito longos, como Paraíso Perdido (exemplo dado pelo próprio Poe), devem ser lidos como uma sucessão de poemas menores. Aliás, metade do poema épico de Milton é “essencialmente prosa – uma sucessão de excitamentos poéticos intercalados, inevitavelmente, com depressões correspondentes – o todo sendo privado, devido ao extremo de seu comprimento, do elemento artístico imensamente importante, totalidade, ou unidade, de efeito”.
Assim, o princípio da “unidade de efeito” está baseado na noção de prazer, de excitamento elevante da alma. E a contemplação da beleza é o mais intenso, elevado e puro de todos: “Quando, de fato, os homens falam da Beleza, eles querem dizer, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito – eles se referem, em resumo, exatamente àquela elevação intensa e pura da alma”. E se uma obra mais longa não pode atingir esse excitamento, devido a uma necessidade, como já dito, física, da brevidade de todo e qualquer tipo de excitamento, seria, então, o conto, a prosa curta, o lugar da Beleza na prosa? Também não parece ser esse o caso.
Em uma resenha do livro Twice-Told Tales, de Nathaniel Hawthorne, publicada em abril de 1842, Poe afirma: “O conto propriamente dito, em minha opinião, proporciona, inquestionavelmente, o campo mais justo para o exercício do talento mais elevado, entre os que podem ser proporcionados pelos amplos domínios da simples prosa. Fosse eu solicitado a dizer como o mais alto gênio poderia, de maneira mais vantajosa, ser empregado para a melhor exibição de seus próprios poderes, deveria responder, sem hesitação – na composição de um poema rimado, que não exceda em tamanho o que pode ser lido em uma hora”.
Igualmente um romance, ele afirma em uma outra resenha (de 1841), não tem como manter a “totalidade de efeito”, e se há algum prazer derivado da sua leitura, será um prazer composto, feito a partir da soma dos vários sentimentos prazerosos da leitura. Assim, não devemos achar que Poe está eliminando qualquer possibilidade de prazer na leitura de um romance. Em “Filosofia da Composição”, Robinson Crusoé é citado como um exemplo de composição em prosa que não demanda a unidade, e que, portanto, pode ultrapassar o limite de tempo de leitura, “de forma vantajosa”. Podemos pensar, então, que Poe, embora certamente assuma a superioridade do poema, não exclui a possibilidade de algum tipo de prazer na leitura do romance.
De volta à resenha do livro de Hawthorne, ele nos diz: “… a Verdade é frequentemente, e em um grau muito alto, o objetivo do conto”. O poema, por seu lado, tendo como objetivo a mais alta ideia da beleza, tem, no ritmo, a ajuda essencial para se atingir esse objetivo. Ritmo que, por outro lado, atrapalha as expressões do pensamento que tem por base a verdade. Nesse caso, o conto teria uma superioridade ao poema, porque seu campo de atuação, o pensamento e a verdade, são mais vastos, embora não mais elevados que a beleza; “seus produtos”, então, “nunca são tão ricos”, quanto os do poema, “mas infinitamente mais numerosos, e mais apreciáveis pela massa da humanidade”.
É interessante Poe colocar a verdade como objeto do conto, mas não fazer o mesmo quanto ao romance. Contos e textos científicos, portanto, estariam mais próximos no campo da prosa. Porém, podemos pensar que, se o romance tem um prazer indefinido, que lida com imagens e sensações indefinidas, nele poderiam ser trabalhados qualquer um desses objetivos, mas nunca através do princípio da unidade de efeito. Além disso, se, como afirma Poe, a verdade pode entrar “colateralmente” no poema, mas nunca como objetivo final, não poderia também a beleza entrar colateralmente na prosa? Ora, parece que o problema para isso está ligado à questão do ritmo. Poe até concede a possibilidade do conto buscar a beleza, mas, nesse caso, o escritor estará “trabalhando em grande desvantagem”, justamente porque o conto, sendo prosa, não tem o essencial do poema: o ritmo.
Lembremos que Poe advoga, em termos contemporâneos, por uma teoria dos “efeitos”, em que a beleza é sempre um efeito a ser atingido. Nesse caso, ele se aproxima mais de Kant do que de Platão: a beleza não é uma forma ideal que está no mundo, mas uma relação, uma forma de ver; um objeto é sempre belo para, nunca em si.
O poema, portanto, é uma forma de transmitir esse efeito, o prazer, o excitamento elevante da alma, que está na contemplação da beleza. O poeta contempla a beleza nas coisas não só desse mundo, e busca produzir esse efeito no seu poema. Sendo um efeito, ela depende muito mais de um como fazer, de um modo de apresentar. E é aí talvez que devemos entender a diferenciação de Poe. A verdade e o dever não são tratados como efeitos; assim, podemos supor que, como objetivos, eles são mais facilmente trabalhados na prosa, que pode ter uma extensão maior ou menor, e lidar com um prazer variável e indefinido. Talvez não seja o caso de eliminarmos qualquer possibilidade de prazer na leitura de um romance, ou de um conto, mas esse nunca se equipara ao prazer supremo da leitura de um poema – não muito longo – que, através do ritmo, consegue nos transmitir a beleza das coisas infinitas e eternas.
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