Uma notícia sobre Jorge Amado
- editoracontratempo
- 31 de ago. de 2023
- 6 min de leitura
Giovani B. Orlandini.
Doutorando em Teoria Literária pela UFPE.
Este mês de agosto foi marcado pelas datas de nascimento e de morte de um dos maiores escritores brasileiros. Jorge Amado foi uma figura de grande destaque: romancista de alcance internacional, traduzido para dezenas de países; defensor da cultura popular e dos interesses das camadas mais baixas da população, seja como político, seja como artista; nome influente no processo de valoração dos costumes nordestinos e, em boa medida, um dos criadores de certa noção de nacionalidade cunhada nas primeiras décadas do século passado. Sua obra é não apenas vasta, mas também variada. Sua prosa tomou lugar em palcos de teatros, séries e novelas televisivas e nas grandes telas do cinema, aqui e em outras partes do mundo. De fato, a penetração social de algumas de suas personagens – Dona Flor, Vadinho, Gabriela, Pedro Bala, Quincas Berro d’Água, Tieta, entre tantos outros – é algo que poucos outros escritores brasileiros, talvez nenhum deles, tenha conseguido igualar. Como se isso não bastasse, Amado contou com um grupo seleto de amizades que vão desde as mães de santo de Salvador até autoridades intelectuais da Europa, passando por toda sorte de artistas mundo afora.
Mesmo se tratarmos apenas de seus romances, gênero que Amado mais produziu – são mais de 20 – e pelo qual goza de maior reconhecimento, é praticamente impossível a tarefa de resumir sua obra em uns poucos parágrafos. Tentando outro caminho, talvez seja possível dar uma notícia que ajude a delinear certa brasilidade própria do autor e, com alguma pretensão, do conjunto da obra. O “baiano romântico e sensual”, alcunha forjada por ele mesmo, apresenta uma amálgama de elementos e contradições que, sem deixar dúvidas, representam bem certos processos da formação social e cultural brasileira. A começar pela vocação política, marcadamente presente nas décadas de 1930 e 1940, momento em que Amado se apresentou como escritor engajado, chegando a centralizar parte do debate nas órbitas de seu projeto de romance proletário. São romances notoriamente ideológicos, é certo, porém que não abrem mão do colorido e da malemolência da cultura baiana: as figuras periféricas, a riqueza na recuperação das tradições orais, os heróis populares, a pegada aventuresca e melodramática, toda uma sorte de ingredientes devidamente apimentados pela sensualidade tropical, tudo a serviço dos ideais da jovem e claudicante esquerda dos primórdios do Brasil moderno.
Não por acaso, essa inusitada e admirável mistura acerta em cheio na reprodução de uma dinâmica muito presente em nossa constituição nacional, algo da ordem do paternalismo ilustrado das classes intelectualizadas ou, digamos, mais esclarecidas – uma condição que, embora em menor grau, ainda viceja na contemporaneidade. Não se trata de afirmar, e isso é importante, que a pontaria mimética de Jorge Amado seja absolutamente admirável. Antes o contrário: sua força de reprodução da matéria social não se situa no domínio da forma – uma marca comum aos grandes mestres literários –, mas sim nas fissuras que a forma deixa entrever, nas fendas oriundas da costura de elementos aparentemente tão alheios a um arranjo de justaposição. Porém, é nessa malha profunda de tecitura improvável, muito mais do que na superfície multicolorida e quase caricatural dos elementos populares, que reside um vigoroso desvelamento da matéria brasileira, da vida social de um país em suas estruturas.
Para que essa afirmação não soe como algo arbitrário e desnecessariamente vago ou nebuloso, é preciso assumir o risco de desviar um tanto o andamento da conversa, trazendo um exemplo que, melhor do que qualquer explicação, ilustra a avaliação apresentada acima. Em Jubiabá, romance de 1935, Amado apresenta a trajetória de Antônio Balduíno, o Negro Baldo. Oriundo da periferia pobre de Salvador, Baldo é formado desde criança pela herança popular de seu povo. Seus exemplos, transmitidos oralmente pelos moradores mais velhos do Morro do Capa-Negro, vão desde a valentia dos antepassados que lutaram contra a escravidão e o coronelismo, passando pelos elementos típicos da cultura popular – samba, capoeira, abc’s etc. –, chegando ao respeito permeado de temor diante da figura de Jubiabá, pai de santo que dá nome à obra, um ancião respeitado como grande sábio, guardião dos conhecimentos da religiosidade de matriz africana, liderança espiritual e cultural da região. Baldo, por sua vez, é nada menos do que um herói popular – figura, aliás, contumaz nas narrativas amadianas –, um líder nato entre os seus, altamente proficiente em toda ordem cultural que o rodeia, grande boêmio conquistador e com coragem de sobra para não fugir de uma boa briga. Entretanto, a sensação de injustiça e humilhação vivida por ele e pelos seus é apenas parcialmente sanada por esse ímpeto natural do personagem. Pois é justamente nesse vácuo que entra a figura marcante do narrador do romance, qualquer coisa como um representante da classe média supostamente ilustrada e legitimamente preocupado com a sorte das camadas inferiores, munido de um aparato ideológico e intelectual que procura denunciar as causas estruturais das mazelas sociais que vitimam Balduíno e os demais menos afortunados.
Em suas andanças no interior do enredo, numa espécie de vai e vem misturado com altos e baixos, Baldo vai aos poucos tomando consciência dessas estruturas, no caminho que o leva do lumpesinato boêmio à luta de classes: para deleite do narrador engajado – e dos leitores menos atentos que engolem com casca e tudo sua afeição sapiente –, o herói conclui, ao final de sua formação pessoal, que a verdadeira batalha a ser travada não se encontra nas heranças da oralidade, mas sim na organização sindical, junto aos companheiros do cais do porto que saem vitoriosos de uma grande greve. Para completar e simbolizar o ciclo, o próprio Jubiabá, encarnação máxima dessa sabedoria originária, curva-se aos pés de Baldo, em reverência, reconhecendo-o como o verdadeiro sábio de seu povo.
Essa relação assimétrica e vertical entre narrador e protagonista, que aqui apresento de forma bastante resumida e simplificada, já bastaria para dar o tom do paternalismo tipicamente brasileiro que apontamos acima: certa classe social que, gozando de acesso a determinadas leituras e teorias, aponta os caminhos de redenção para os demais, aqueles a quem, por não desfrutarem de certos conhecimentos, cabe a função de serem guiados. Mas mesmo no interior do enredo de Jubiabá, essa dinâmica é perceptível, e não só isso, sendo ainda mais aguda e ressoante para o todo da obra: o movimento derradeiro que completa a formação de Balduíno se dá no momento em que ele assume a paternidade do filho da falecida Lindinalva, a bela e alva filha do comendador. Baldo fora apaixonado pela moça desde a adolescência, uma paixão jamais correspondida, sobretudo, pela distância social que os separava. Enganada pelo noivo e abandonada pela família, a jovem termina a vida como prostituta, desprezada por todos após uma gravidez indesejada.
Dito assim, o ato de Balduíno pode ser entendido como pura benevolência ou como uma derradeira demonstração da paixão por Lindinalva, sentimento que o acompanhou em toda narrativa. Basta um passo além, entretanto, para que a coisa mude de figura, pois é na dificuldade em criar o filho por ele adotado que se encontra a virada decisiva de sua formação: numa obra cujo intuito central é desvelar o arranjo socioeconômico que promove e perpetua a desigualdade, intuito acentuado na presença robusta de um narrador que se coloca acima das personagens, o dono de certa racionalidade que, embora simpática, subestima outras fontes de conhecimento, é no mínimo curioso, convenhamos, que a guinada decisiva tenha origem em motivos de ordem sentimental no interior de uma relação, mais uma vez, assimétrica e vertical. Baldo se curva aos pés da moça moribunda, pedindo perdão por um crime que jamais cometeu. Seja com o narrador, seja com Lindinalva, o entendimento adquirido pelo protagonista vem, em grande medida, de cima para baixo.
Eis o ponto que abordamos anteriormente. Jorge Amado mira na representação positiva da cultura popular, mas acerta em uma supostamente necessária superação de sua condição pela ilustração ideológica; mira no desnudamento racional das estruturas sociais injustas, mas acerta no melodrama saturado de sentimentalismo; mira na aproximação entre as classes médias e os despossuídos e perseguidos, mas acerta, e aqui acerta em cheio, na dinâmica paternalista, na assimetria verticalizada que, aos trancos e barrancos, a despeito de umas conquistas aqui e ali, impossibilitou e talvez ainda impossibilite transformações profundas e radicais nas estruturas sociais brasileiras.
Ou seja, ao voltar as intenções para um ponto e atingir outro, é nas brechas da forma literária, naquilo que o Amado, digamos, deixou escapar na composição da obra, que essa mecânica reiterada de nossa formação nacional se deixa entrever. Essa mesma mistura se repete em outras de suas obras, contando com as peculiaridades de cada uma delas, com as mudanças de estilo e de posicionamento que Amado apresentou ao longo da carreira.
Nada disso significa, que fique claro, que Jorge Amado não seja um de nossos grandes escritores, que alguns de seus romances não sejam grandes obras, nem que sua representatividade para nossa cultura seja menor. Significa somente que, em muitos casos, talvez na maioria, os aspectos mais representativos da brasilidade não se encontram na superfície, no belíssimo colorido da natureza ou na não menos bela variedade de nossa cultura popular, mas sim na camada seguinte, na profundidade que orienta nossas relações de ordem social. No exemplo que usamos aqui, e em algumas outras obras, Jorge Amado mira na revolução, na transformação, mas acerta em cheio no Brasil assimétrico, verticalizado e desigual.
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